Num conjunto de quase 500 magistrados judiciais portugueses que responderam ao mais recente inquérito da Rede Europeia de Conselhos de Justiça, 26% dizem acreditar que alguns juízes receberam subornos nos últimos três anos. Também 27% acreditam em irregularidades na distribuição de processos judiciais.

Conceição Gomes | 15 de Agosto de 2022


Para este estudo foram inquiridos 494 magistrados judiciais portugueses no primeiro trimestre deste ano Daniel Rocha
O quarto inquérito feito a juízes sobre a avaliação que fazem da sua independência, individual ou de todo o sistema, realizado pela Rede Europeia de Conselhos de Justiça desde 2015, revela que em Portugal, mais de um quarto dos inquiridos (26%) acredita que nos últimos três anos juízes aceitaram subornos ou envolveram-se em outras formas de corrupção. Isso pode ter acontecido frequentemente (para 1% dos inquiridos), ocasionalmente (para 6%) ou muito raramente (19%).
A troco de dinheiro, vantagens não monetárias ou outros favores, terão sido persuadidos a assumir uma decisão específica num determinado processo ou julgamento. Para este estudo foram inquiridos 494 magistrados judiciais portugueses no primeiro trimestre deste ano.
De acordo com os resultados do estudo divulgado no passado dia 12 de Agosto na página do Conselho Superior da Magistratura (CSM), também 27% dos juízes inquiridos concordaram com a afirmação de que “houve distribuição de processos a juízes à revelia das regras ou dos procedimentos estabelecidos nos últimos três anos”.
Para Conceição Gomes, coordenadora executiva do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa, e que frequentemente se debruça sobre aspectos que minam a credibilidade do sistema de justiça, estas são porém duas conclusões “realmente surpreendentes”. “Estes indicadores do estudo apresentam valores negativos muito relevantes porque vêm de dentro do judiciário”, sublinha a também investigadora do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, que lembra a prevalência já existente destas percepções entre os cidadãos.
“As percepções negativas da administração da justiça tendem a agravar-se, quer no que respeita à eficiência e morosidade mas também à corrupção no judiciário, com práticas de favorecimento e opacidade. A minha surpresa com este estudo é essa percepção vir de dentro do judiciário”, acrescenta a académica.
“São os próprios juízes a questionar o seu funcionamento, a ter uma posição crítica sobre ele, a pedir acção por parte dos órgãos de gestão do judiciário e das políticas públicas para que estes ajam no sentido de corrigirem estes aspectos. Deve ser salientada esta atitude crítica dos próprios sobre o sistema, como relevante e saudável”, diz, notando que vem quebrar com a ideia dominante de um “corporativismo na justiça”.
Nos inquéritos de 2015, 2017 e 2019, e neste em particular de 2022, os magistrados judiciais portugueses reconhecem que o sistema pode não ser imune a pressões e tentativas de influência. O documento de 88 páginas envolve 27 países – ou 29 autoridades judiciais já que no Reino Unido estão repartidas em três – e diz respeito a diversas vertentes da acção dos juízes: não só relativas a pressões externas mas também, por exemplo, às condições de trabalho e como estas afectam a sua independência.

Sócrates e Rangel

“É certo que as percepções dos juízes hão-de ser influenciadas pelo que vem a público”, diz a propósito da mediatização de suspeitas sobre a distribuição de processos no âmbito da Operação Marquês, e ainda sobre os processos visando juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, acusados de corrupção.
“Mas a manutenção destas percepções negativas também indicia, e não me surpreende, que os órgãos de gestão do poder judicial não tomam medidas para diluir estas visões negativas que também existem na sociedade. É urgente os órgãos de gestão do judiciário tomarem medidas e é, para mim, incompreensível que não percebam a premência” de tal iniciativa, conclui.
No processo da Operação Marquês, o principal arguido, José Sócrates, apresentou queixa contra o juiz de instrução criminal, Carlos Alexandre, alegando que este teria impedido que o processo fosse parar às mãos de um outro magistrado, na fase de instrução, quando entrou em vigor a nova organização dos tribunais. O caso ainda não está encerrado: em Maio, Carlos Alexandre foi ilibado de abuso de poder mas Pedro Delille, advogado de Sócrates, disse ao PÚBLICO que vai recorrer da decisão.
Quanto a Rui Rangel e Fátima Galante, estes ex-juízes do Tribunal da Relação foram afastados da magistratura (Rangel expulso e Galante aposentadacompulsivamente) por suspeitas de corrupção e de venda de sentenças na Operação Lex, havendo igualmente suspeitas sobre os juízes Orlando Nascimento e Vaz das Neves, por alegado envolvimento com os primeiros na distribuição fraudulenta de processos.
Estes casos conduziram a uma nova realidade e, por conseguinte, a uma diferente percepção, considera o juiz Filipe César Marques, presidente da MEDEL – Magistrados Europeus pela Democracia e as Liberdades, na análise que faz das percepções negativas dos seus pares. Para o magistrado, as respostas dos inquiridos foram certamente influenciadas por esse “fenómeno novo que marcou os juízes” quando Rangel e Galante foram “punidos pelo Conselho Superior da Magistratura (CSM) por terem sido activamente corrompidos”.
“Isto foi bastante mediatizado e também entre os próprios juízes teve esse impacto. Assim sendo, se me fizerem a mesma pergunta, eu vou dizer que sim porque pelo menos houve esses dois casos: o CSM deu como provado que sim e isso levou à expulsão” dos visados, sustenta. “Estas notícias marcaram muito a magistratura, porque foi algo que feriu a honra dos magistrados portugueses e condicionou a sua percepção. O mesmo aconteceu com a distribuição manual dos processos: todas as dúvidas vindas a público, relacionadas com a Operação Marquês também colocaram em dúvida aquilo que as pessoas nunca tinham questionado porque a distribuição era feita aleatoriamente e sem que houvesse qualquer dúvida quanto a ela.”

Apagão do Citius

A essas dúvidas, juntou-se o apagão do Citius em Agosto de 2014, quando a plataforma informática que gere os processos dos tribunais nacionais ficou inoperacional durante 44 dias, impedindo que essa distribuição fosse electrónica, acrescenta: “Tudo isso condiciona a percepção dos próprios juízes.”
Ao mesmo tempo Filipe César Marques concede que o facto de este ser um estudo de percepção e, por isso, subjectivo, não lhe subtrai importância. “Só o facto de os juízes terem essa percepção já é muito grave. Que um cidadão comum diga que, por ouvir as notícias, acha que isto acontece, isso é mau mas previsível porque não conhece o sistema. Agora que um juiz que conhece o sistema por dentro passe a ter dúvidas quanto à confiança que tem nele, é muito mais grave”, expõe.
O documento publicado no dia 12 de Agosto aponta o dever dos Conselhos Superiores da Magistratura e outros órgãos directivos “de analisarem os resultados” e “abordarem as questões levantadas pelos inquiridos”, tanto mais, sublinha, que “a corrupção é um problema em diversos sistemas judiciais e que num conjunto ainda mais alargado de sistemas judiciais, as autoridades judiciais são vistas como não estando a fazer o suficiente para combater a má conduta e a corrupção”.

Relatório